A Rádio Vanguarda de Feira

A Rádio Vanguarda de Feira

sexta-feira, 22 de julho de 2016

CONTRACULTURA, POLÍTICA E HIPPISMO NOS 70

Fazenda de Gute Fernandez — com Rosa Villas-Boas, Angela Nou e Dalmiro Coronel. Foto acervo Dalmiro Coronel

Anos 70 Bahia – Episódio 22

Os anos 70 marcaram a explosão do movimento hippie na Bahia. Salvador, Arempebe, Trancoso e Berlinque (território de My Friend) consagraram-se como "terra prometida” da peregrinação mochileira e da vida alternativa. Comunidades brotaram em toda parte e os outsiders, os marginais ao sistema viviam o coletivo, as casas com as portas escancaradas para quem chegasse. Na Boca do Rio, Pituaçu e aldeia hippie muita gente veio para morar, as tribos da contracultura misturadas a nativos e pescadores.
A fazenda de Gute Fernandez, em Feira de Santana, era um desses pontos de encontro: casarão antigo, quartos amplos, piano na sala. O artista plástico Cândido Soler apareceu lá para passar um fim de semana e ficou quase três meses. Era assim na fazenda Cipó e também na fazenda Guará, de Jonga Falcão, em Barreiras: uma comunidade de três casas com cozinha geral, por onde passou muita gente. Um paraíso nessa bela parte do oeste baiano antes da soja, com rios cristalinos e sem os venenos dos agrotóxicos.
Equilíbrio é arte em vida, e arte nos ensina. Aqui Rosa-Villas boas dá um show na borda de um veleiro, perto de Morro de São Paulo. Foto Dalmiro Coronel

O cineasta Domingos de Oliveira relata, em sua autobiografia, que a importância do movimento hippie não foi levada em conta pela esquerda: “Penso que foi o movimento mais importante que houve no mundo, depois da revolução comunista em 1917. Porém, a consciência revolucionária, esta foi destruída pela sociedade de consumo com um vendaval maligno, um sopro infernal. (...) Concordo com quem acha que o maior erro da esquerda foi não ter percebido de imediato que os hippies não eram seu oposto, mas sim, sua continuação! Isso foi um erro político lastimável, trágico!”
Era um tempo de descobertas, enfrentamentos e opções antagônicas entre o engajamento e o desbunde, entre o deixa rolar e o deixa sangrar. No Brasil, a cortina desceu abruptamente em meados dos anos 60 e acirrou-se no final da década, marcando os 70 com a contradição entre o hippismo marginal ao sistema num extremo, e a luta armada contra o regime militar no outro. Neste episódio, o livro Anos 70 faz uma visita-relâmpago à contracultura (tema abordado nos episódios 3, 4, 17 e 18 aqui postados), mais adiante o faremos ao engajamento político.

A doçura cenográfica dos Bárbaros, by Walter Firmo
O fato é que, no âmago da contradição, havia afinidades e convergências. Para a professora Heloísa Buarque de Holanda, “a gente tinha a certeza que ia fazer a revolução; era uma geração voluntarista, sem dúvida, e estava tudo indo muito bem. Quando 68 chegou, foi o último berro. (...) Tudo era proibido, mas já havia começado uma certa fragilização desse controle quando veio o segundo golpe, que abortou um projeto que estava num pique absurdo. Porque o tropicalismo e a passeata se confundiam. Era a mesma coreografia. (...) Foi uma hora em que a cultura fez política". (Tirado do livro “Enquanto corria a barca”, de Lucy Dias – pgs. 34 e 35).
Bakunin, Thoureau, Huxley e guerra fria a parte, o movimento hippie aplicou um choque cultural de alta voltagem no “establishment” das décadas de 60 e 70, sacudindo os pilares da velha ordem: aproximou-nos da natureza e dos ideais igualitaristas, fez um link do ocidente com o oriente, em especial no misticismo e na música, legou-nos a comida macrobiótica e a liberdade feminina, juntando as mulheres e os homens na mesma pegada; celebrou a simplicidade em oposição ao capitalismo consumista, falou de paz, amor, aventura, viagens, buscou novas percepções do nosso mundo e do universo, garimpou shangrilás em regiões paradisíacas do planeta.
Marquinhos Rebu e amigas na ilha de Itaparica

O poeta Galvão, dos Novos Baianos, resumiu: “Desenvolveram-se aptidões manuais e criou-se um mercado artesanal de trabalho. Aboliu-se de cara o livro de ponto, o horário, a materialização do patrão e por aí o jovem escolheu sua vida. Sinto dizer que alguns piraram, e outros, os pais (por ignorância) colocaram no sanatório”. É certo que houve céu e inferno, luz e trevas, como em qualquer revolução, mas o legado que deixou não foi aproveitado como devia. Será?
Cacá Dourado e Sérgio Souto (saudades!). Do baú de Oscar Dourado
FERNANDO NOY (comentando a foto acima) – Sérgio Souto, que maravilha revê-lo, aquele abraço. E nada menos Oscar (Cacá) Dourado, um dos grandes amigos-irmãos da Bahia, com aquele esplendor que segue sempre irradiando, pois o visitei há pouco e a Inês e suas filhas. Venerados. Que maravilha esta foto. Ovações!!!

FERNANDA FALCÃO TORRES – Oiiii!! Sou filha de Petúnia Maciel e Marcos Maciel Santos. Acompanhei muito desses momentos com o olhar de criança e pré-adolescente! Foram definitivamente anos do "muito": muita alegria, farra, música, amigos, drogas, descobertas, loucos... e por aí vai.... Vivi no sítio dos Novos Baianos, moramos na casa de Caetano e Dedé, festas maravilhosas na casa de Gil e Sandra Gadelha, moramos muito tempo na Boca do Rio, que, durante algum tempo, me parecia uma mini-aldeia hippie... kkkkkkkkk... Com Joildo Goes sendo Joildo, Keka Almeida lindíssima... Na casa de Veras tinha uma baleiro enorme, cheio de tudo o que uma criança mais gostava, eu nunca tinha visto igual... Fiquei louca!! E ele, vendo minha cara de "vontade daquilo tudo", me deu todos os doces do baleiro!! Foi um dos dias mais felizes da minha infância... Fiz curso de jazz com Lennie Dale e tive a sorte de no meu aniversário ter uma dança coreografada por Paulete dos Dzi Croquetes, era baseada na novela Dancing Days... Íamos a Itaparica para visitar João Ubaldo, ele e Petúnia enfiavam o pé na jaca. Fazenda em Ipiaú... Zebrinha! Xoxa foi meu fiel escudeiro durante a adolescência, uma companhia inestimável... meu Deus... tem muito mais... tantas lembranças! Não... Não foi fácil ser criança e filha de pessoas que viveram intensamente esses anos, mas sou privilegiada de ter esses pais. Sou filha desses anos felizes... Axé!!

Era Lacerda Encarnação, clicada por Candinho
FERNANDO NOY (comentando a foto acima) – Era!!! Fabulosa presença dos anos 70. Até hoje sempre tão amada, admirada, recordada... besos!!

ERA LACERDA ENCARNAÇÃO – Meu amado e generoso amigo, te amo!!! Beijos mil!
JOSE JESUS BARRETO – O amor, o sorriso e a flor / sexo, drogas e rock n'roll – mais revolucionário para a humanidade que revoluções armadas que tantas vidas ceifaram. Precisamos de novas revoluções no campo da cultura, das artes, do comportamento, do pensamento. O séc XXI, parece, ainda nem começou.

 No Senac, Fernando Noy com a atriz Walquiria Marques, de Porto Alegre, e o ator cearense Padino, quando da montagem de "Peso dos nervos", de Antonin Artaud, na performance inaugural do Expoema - mostra de poesia ilustrada por Gilson Rodrigues, Carlos Bastos e outros pintores baianos. Coordenação do poeta Paulo Barata (1973). Foto: arquivo pessoal Fernando Noy
EURICO DE JESUS – Passou como uma agradável e lúdica brisa utópica, refrescando nossos corpos e mentes: "Quem não dormiu no sleep bag / nem sequer sonhou"!
TACILLA SIQUEIRA – O facebook tornou-se enfim mais psicodélico, artístico e afetivo. Lindo o resgate dos anos 70! Eu me lembro de muitas dessas viagens loucas e dos encontros festivos no nosso apartamento no Canela, onde eu trafegava de camisolinha por entre cabeludos dançantes. Nas minhas memórias infantis a vida era uma grande e linda festa, onde se bailava, ria e filosofava... E bastava aqueles encontros onde todos eram simplesmente felizes... E igualmente felizes éramos nós as crianças criadas nos anos 70.
Elsior Lapo Coutinho – Adorei o depoimento da filha de Marcos Maciel, ícone de nossa época. Ela resume e fala de tudo que vivemos, muito bom.
Marcos José Souza – Que maravilha! Enquanto vocês viviam esse sonho, daqui, quando criança, acompanhava alguns flashes pelas ondas sonoras das saudosas rádios Excelsior e Clube. Tempos árduos. Tempos dos setenta. Um grande beijo ao Anos Setenta Bahia. Obrigado pela partilha.

 Fernando Noy: "Não eram nada confortáveis quando levavam as pessoas seminuas e felizes em ácido, cheias de alegria... mas aconteceu... fusca do diabo!!!"

ROMARIA À CASA DE VINICIUS EM ITAPUÃ

A casa de Vinicius e Gesse, em Itapuã, ainda está lá. Foto arquivo pessoal de Gessy Gesse.

Anos 70 Bahia – Episódio 26



Para desagrado e ciumeira no circuito boêmio-cultural do Rio e São Paulo, Vinicius de Moraes mudou-se para a Bahia no início dos anos 70, “importado” pela atriz Gessy Gesse. Aqui chegando, além dos encantos da sua musa baiana, o poeta deixou-se seduzir pelo carisma e diversidade da boa terra e desfrutou da beleza e magnetismo de Itapuã, onde construiu sua casa. Nos mais de cinco anos em que lá morou, desequilibrou de vez, em favor da Bahia, a balança da artistagem no país!
Ora, direis, o cenário baiano já transbordava de estrelas. De fato, o poetinha aqui encontrou – e logo se enturmou – com gente do naipe de Jorge Amado, Dorival Caymmi, Gláuber Rocha, Carlos Bastos, Carybé, Mário Cravo, Calasans Neto, João Ubaldo, além do time que frequentava a praia tropicalista: Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, Bethânia, Novos Baianos e, ainda, baianos outros que aportaram no centro-sul, como João Gilberto, e voltavam sempre que podiam. E o que dizer do panteão formado por Mãe Menininha, Olga de Alaketu, Camafeu de Oxossi, Batatinha, Riachão e tantas mais afrobaianidades? Como poderia o poeta resistir?
E a romaria à casa de Vinicius não cessava: além dos inumeráveis amigos “nativos” – intelectuais, músicos, escritores, colunáveis da cidade –, aqui aportava gente como Toquinho, Baden Powell, Chico Buarque, Mercedes Soza, Sérgio Endrigo, Danuza Leão, Ellis Regina, Leila Diniz, Pablo Neruda, Astor Piazzola. E havia, para completar, levas de turistas, incansáveis e curiosos, que, por meios diversos, davam um jeito de encontrar a casa do poeta...
Vinicius venerava a Bahia mística, africana e matriarcal sintetizadas em Mãe Menininha, que nutria pelo poeta um carinho especial. Foto: arquivo pessoal de Gessy Gesse.
GESSY GESSE – A coisa chegou, assim, àquele ponto em que Vinicius se bandeava para a casa de Elsimar Coutinho, em frente, e lá ficava sentado na varanda, degustando o seu uisquinho, e se divertia assistindo o movimento no nosso portão, os ônibus de turismo que paravam, carros, gente de todo tipo e de todo lugar. Chamavam, gritavam, batiam no portão, cantavam as músicas do poeta. Dolores atendia e dizia “estão viajando, não estão em casa” e tal. A imponência e autoridade dela convencia os turistas e Vinicius chegava a crises de riso, nesses momentos. Foi assim desde que a casa foi inaugurada, nunca tivemos sossego. (“Minha vida com o poeta” – pg. 112).
LULA AFONSO – Segundo Gesse, Vinicius estava cansado de urbanidades e logo entrou em perfeita sintonia com os encantos naturais de Itapuã e as singularidades da cultura baiana. Trocou os trajes que usava em Ipanema e no Leblon por ‘um velho calção de banho’ e viveu aqui um dos períodos mais produtivos da sua trajetória artística. No relato dos sete anos de convivência, ela evoca, em escala minimalista, os tempos marcados pelas celebridades que frequentavam a casa. Tempos em que a mística da cultura baiana foi guindada ao foco da mídia nacional, imortalizando Itapuã como território livre e nicho cultural, com seu charme e beleza decantados em prosa, verso e musicalidade.

Vinicius, Gesse, Dorival e Stella Maris na casa de Itapuã. Foto: arquivo pessoal de Gessy Gesse
WALTER QUEIROZ – No Principado Livre de Itapuã, como ele chamava, moravam (ou frequentavam) verdadeiros monstros sagrados da cultura brasileira (...) Não é Vinicius quem funda a Bahia como um núcleo de cultura no Brasil, mas ele amarra com chave especial, ele traz uma grife para aquele lugar e momento, porque, simpático como ele era, um homem aberto e universal, e vindo de fora, é como se ungisse e consagrasse, demarcasse a Bahia como terreno cultural de importância para o Brasil e para o mundo”. (Entrevista no livro “Minha vida com o poeta”, pg. 225).
LULA AFONSO - Esse deslocamento de eixo consolida a Bahia como “o lugar” no país, nos anos 70. Com sua cultura de raiz pulsante, original e forte o suficiente para polarizar com a cultura “branca” e intelectual do Rio e São Paulo, bem mais poderosa economicamente.
ANOS 70 BAHIA – O relato de Gessy Gesse sobre a real motivação e a feitura do hino “Tarde em Itapuã” traduz, com crueza e alguma ironia, uma faceta curiosa da inserção do poeta na paisagem baiana. Muita gente pode não apreciar, mas foi assim que aconteceu:
No polêmico (para a mídia nacional) "casamento cigano", Vinicius e Gesse celebram a união com a mistura dos sangues. Foto: arquivo pessoal de Gessy Gesse
GESSY GESSE – O poeta compôs a letra sentado na grama, no loteamento dos amigos Édio e Sônia Gantois (hoje Jardim Patamares), presenteando-a ao casal, como tema para o empreendimento, que então se iniciava. Mas não foi utilizada para esse fim, e Vinicius resolveu guardá-la para Caymmi, com quem era difícil, na época, contato no Rio. O tempo foi passando. (...) Toquinho estava fascinado pela letra e acabou me convencendo a lhe dar. Peguei escondido do poeta, pois a minha intuição dizia que eu estava fazendo a coisa certa. E não deu outra: Toquinho musicou e, uns dias depois, começou a tocar a melodia para Vinicius. Ele ficou ouvindo, ficou ouvindo, a música foi tocada umas dez vezes. O poeta falou, então: “Bonito!” E aí Toquinho atacou com “...um velho calção de banho...” Foi assim que a música foi feita. Podem comparar com a letra que ele mandou de Buenos Aires. (Trechos do livro “Minha vida com o poeta”, pgs. 143 e 216).
Zui Muniz Ferreira – Tive a oportunidade de conhecer Vinicius até hoje sou amiga de Gessy Gesse. Que figura era Vinicius!!!

Gesse e Nilda Spencer na casa de Itapuã. Foto: arquivo pessoal de Gessy Gesse
Antonio Jorge Moura – Ainda foca (jornalista iniciante) do Jornal da Bahia, tive distinção de ser escolhido numa manhã de sábado pelo meu chefe de reportagem, Frederico Simões, hoje nome de rua paralela à Tancredo Neves, em Salvador, para fazer matéria sobre a inauguração da casa de Vinicius de Morais, em Itapuã. Cheguei por volta das 9hs e Gessy Gesse me recebeu. Morenaça! Me levou até a sala, pediu para sentar-me e entrou na área íntima da casa. Minutos depois aprece o Poetinha chacoalhando um copo de uisque, me oferece (recuso por timidez) e senta-se para a entrevista. Mostra o folheto com o poema “A Casa”, uma declaração de amor a Gessy e fala sobre a obra de amor que realizou para sua amada. O texto que fiz está nos anais do Jornal da Bahia.

Estrêla Lyra – Muito bom fazer parte de tanta história.... trabalho no Mar Brasil Hotel e a casa que foi do nosso poeta faz parte do nosso hotel e é onde funciona o nosso restaurante Casa di Vina. O lugar está belíssimo!!!

O convite para a inauguração da casa de Vinicius e Gesse, em 1976, foi desenhado por Carlos Bastos