A vida de Clementina de Jesus tinha tudo para ser igual à de milhões de
pobres brasileiros se não fossem a sua insistência em cantar, a sua voz e
o destino. Ainda menina, costumava acompanhar a mãe, uma lavadeira que
gostava de cantar corimas, jongos, lundus, incelenças e modas, enquanto
trabalhava. Foi provavelmente nesta época que aprendeu os cantos de
escravos que, anos mais tarde, fariam a sua fama
Com apenas
dez anos, foi morar com a família em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Um
vizinho, que sempre escutava a menina Clementina de Jesus cantando
dentro de casa, ofereceu para a garota o papel de solista em procissões e
festas religiosas. Após a morte do pai, a situação financeira da
família ficou muito complicada e Clementina de Jesus não teve outra
alternativa a não ser trabalhar como empregada doméstica, lavadeira e
passadeira. Durante mais de 20 anos, esta foi a atividade que a
sustentou.
Pouco tempo antes de morrer, em um depoimento, Clementina de Jesus disse que todos os integrantes da casa onde
trabalhou como empregada doméstica gostavam de ouvi-la cantar, com
exceção da proprietária, que dizia que a sua voz era irritante, por
parecer um miado de gato. No final dos anos 20, passou a freqüentar
blocos de Carnaval que, depois, seriam transformados em
escolas-de-samba. Depois de dois casamentos, um deles com Albino Correia
da Silva, o Pé Grande, um torcedor fanático da escola de samba da
Magueira, o destino bateu à porta de Clementina de Jesus e a empregada
doméstica deu lugar a uma cantora que marcou época na música popular
brasileira.
Seu canto rouco e quase falado, fora dos padrões
estéticos, conquistou a crítica, compositores, artistas e,
principalmente, o povo. Um dos retratos do sincretismo brasileiro,
Clementina de Jesus estabeleceu uma ponte entre o folclore dos terreiros
de candomblé com a linguagem contemporânea. Finalmente, em 1964, quando
já contava com 62 anos, a cantora teve a sua grande oportunidade
profissional.
O compositor e produtor Hermínio Belo de
Carvalho, que já tinha visto Clementina de Jesus se apresentar em bares
do Rio de Janeiro, convidou-a para fazer alguns shows. No dia 7 de
dezembro do mesmo ano, depois de ouvir um recital clássico (Mozart e
Villa-Lobos), o público que lotava o Teatro Jovem, em Botafogo, ficou
assustado ao ver entrar no palco uma cantora de voz anasalada,
acompanhada por Paulinho da Viola, César Faria e Elton Medeiros.
O sucesso foi imediato, a ponto de Hermínio Belo de Carvalho criar o
musical "Rosas de Ouro", que percorreu as principais capitais
brasileiras. Chamada de "Tina" ou "Quelé" pelos amigos, Clementina de
Jesus gravou mais de 120 músicas e participou de discos de outros
artistas, como Milton Nascimento, por exemplo.
O compositor
Paulinho da Viola, que teve duas músicas de sua autoria, "Essa Nega Pede
Mais" e "Na Linha do Mar" incluídas no disco "Marinheiro Só", um dos
maiores sucessos de Clementina de Jesus, contou em diversas entrevistas
que a cantora era fascinante. "Tudo o que se fala de Clementina de Jesus
não tem a dimensão da presença dela. Ouvi-la cantando, sentada, com o
seu vestido de renda, era algo absolutamente fascinante, difícil de
transmitir, de traduzir em palavras." Pobre, Clementina de Jesus morreu
aos 85 anos, no dia 19 de julho de 1987.
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